Páginas

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Je ne suis pas Charlie - Eu não sou Charlie

A marcha parisiense (11) reuniu mais de 1,5 milhão de cidadãos. Desfilaram importantes símbolos da República: a tricolor (bandeira), Joanna D’Arc, e Marianne, a simbólica mãe da nação que encarna os valores “Liberté, Égalité, et Fraternité” - liberdade, igualdade, fraternidade -. 
Lia-se em camisas, bandeiras, cartazes e faixas: “Je suis Charlie! Nous sommes Charlie!” As caricaturas do Charlie Hebdo estavam por todo lado. Muitos escreveram em suas mãos ou testas um grande “C”, para Charlie.  
No entanto, o ataque contra o semanário Charlie Hebdo foi um ato terrorista, não contra a liberdade de imprensa. Se o Le Monde, o Libération ou o Le Figaro tivessem sido o alvo, aí teria sido um ataque contra a liberdade de imprensa.
Jamais o editorial dos vespertinos francêses teriam defendido a tese de que "o profeta é um jihadista". E o Le Monde não publicaria uma charge de Maomé com uma bomba no turbante, como o fez o semanário Charlie Hebdo. A liberdade de imprensa conhece seus limites - mais não seja o do bom senso em um país com mais de 6 milhões de muçulmanosgrande parte deles vivendo em condições precárias - especialmente quando o tema envolve religião. 
Não querendo ser contraponto de nada, interrogo-me com a atitude enervante (para não dizer repugnante) de muitos governantes europeus e de outros países - cerca de 60, ao todo -, que ao longo dos 200 metros mais vigiados do planeta, desfilaram suas hipocrisias sem o menor constrangimento. Todos queriam participar de alguma forma, até mesmo o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Salman bin Abdulaziz, que um dia depois do massacre ordenou que chicoteassem  um blogueiro saudita com 1.000 chibatadas -por insultar o Islã- enviou seu apoio à manifestação... caricato. Líderes que fomentam justamente o ira, a revolta e a xenofobia, caminharam como se fossem emissários da paz. Que mundo podre é este? Como a opinião pública é tão grosseiramente enganada e ainda se comove com este tipo de gente (??), muitos deles não muito diferentes dos facínoras que repudiavam naquela marcha?
Hoje, quarta-feira 14, três milhões de exemplares de Charlie Hebdo serão vendidos nos quiosques, em vez dos habituais 30 mil. Oito páginas, em vez das costumeiras dezesseis.  
O jornal conta agora com meio milhão de euros para garantir a sua continuidade vindos do Fundo para a Imprensa e o Pluralismo e do Fundo para a Inovação Digital da Imprensa (financiado pelo Google). O governo francês já anunciou que vai encaminhar um milhão de euros para garantir o futuro do jornal satírico, que também está a ser alvo de campanhas informais de subscrição e recolha de donativos. Estranho que dias atrás o mesmo tabloide leiloava objetos para conseguir ir para as bancas. Do nada surgem fundos públicos de mais de 1 milhão de euros. Será o preço que o governo francês paga para aparecer como "um governo forte e determinado" no combate aquilo que fomentam mundo afora? É bastante estranho que dias atrás os líderes do 'Hebdo' debatiam-se com a necessidade de leiloar bens para conseguir lançar mais uma edição e, tendo sido assassinados, aí sim a 'Charlie' virou prioridade do Ministério da Cultura francês. Aproveitamento político descarado e nojento.


Em novembro de 2011, um coquetel molotov havia provocado um incêndio e destruído a velha redação do semanário satírico. À época, o ataque terrorista tinha elos com o fato de o semanário ter sido intitulado Charia Hebdo  (Semanário da Lei Islâmica). Na capa, uma caricatura de Maomé, convidado para ser o redator chefe da edição. Dizia a charge: “100 chicotadas para aqueles que não morrerem de rir”.
Charb recebeu várias ameaças de morte. Desde então o diretor do semanário vivia sob proteção policial. Idem a nova redação do jornal. É claro que Charb e os jornalistas/caricaturistas do semanário satírico não mereciam ser vítimas dessa barbárie. No entanto, aceitaram o risco.

Voltando um pouco no tempo, a gênese das ideias dos terroristas de Paris, assim como a de grupos como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, está na Arábia Saudita. Desde 1932, quando foi fundada, até hoje, a Arábia Saudita existe como Estado graças a uma aliança formada por uma família, os Bin Saud, e um establishment religioso inspirado no teólogo Muhammad ibn Abd al-Wahhab que viveu entre 1703 e 1792 e era fortemente influenciado pelo teólogo do século XIII Taqi al-Din ibn Taymiyya, que pregou a retomada do passado glorioso da civilização muçulmana por meio de um retorno às origens do Islã, cuja base seria a interpretação literal do Alcorão e um estilo de vida igual ao de Maomé – preceitos da doutrina hoje conhecida como salafismo. Como discípulo de Ibn Taymiyya, Al-Wahhab desenvolveu o wahabismo, a versão saudita do salafismo.
Este “avanço” ideológico criou um gigantesco desafio para os sauditas: hoje, a principal contestação ao regime da família Saud vem de wahabistas que não consideram o governo suficientemente islâmico.
Para contê-los, o governo usa dois expedientes: por um lado, usa seus petrodólares para proporcionar inúmeros benefícios sociais a suas populações. Para quem ainda assim insiste em ser dissidente, jihadista ou não, há um draconiano sistema de controle social e político, que subjuga as mulheres, inclui uma polícia moral e punições como crucificações e decapitações. Responsável por cuidar do lugar onde o Islã nasceu – as cidades de Meca e Medina –, a Arábia Saudita pune os "ataques à religião" com atroz severidade, legitimando ao resto do mundo muçulmano a punição da blasfêmia. A mais recente vítima é o blogueiro liberal Raif Baddawi. Na quinta-feira 8 de janeiro, a Anistia Internacional confirmou que Baddawi foi condenado a mil chibatadas por "insultar o Islã" – 50 por semana, durante 20 semanas.
Além disso, a aliança da família Saud com os EUA e os países europeus, entre eles a França, continua sendo fundamental para ambos os lados. Juntos, Estados Unidos e União Europeia apoiam de maneira firme as ditaduras do Oriente Médio, que retiram de seus cidadãos toda possibilidade de exercer oposição, a não ser a religiosa.
Sem parlamentos, partidos, imprensa, sindicatos e movimentos estudantis independentes, sobram as mesquitas, infestadas de clérigos que pregam a violência. Em um ambiente de quase total ausência de espaço democrático, não há chance de debate livre sobre a religião, e o radicalismo prospera. Diante da generalizada percepção de que os muçulmanos estão sitiados pelo Ocidente desde a colonização europeia, pessoas e instituições ocidentais tornam-se alvo prioritário.
Uma lógica semelhante se reproduz na Europa. As comunidades muçulmanas têm enorme dificuldade em se integrar e geram uma série de indivíduos ressentidos – com a pobreza, a falta de perspectivas e o preconceito. Alienados e marginalizados, os jovens muçulmanos, cujos índices de desemprego são ainda maiores que os dos jovens europeus, por sua vez enormes, ficam à mercê da radicalização propagada por clérigos extremistas.
É nesses caldos culturais e sociais, seja na Europa, seja no Oriente Médio, que o jihadismo floresce.
Cabe questionar, no entanto, se franceses (ingleses, alemães, norte-americanos, etc) vão tratar o atentado como uma ofensiva civilizacional do Islã contra o Ocidente, fortalecendo extremistas de todos os lados, como desejavam os terroristas, ou vão debater as raízes da arriscada aposta feita por seus governos – conciliar a aliança a uma teocracia sociopata com a obrigação de proteger seus cidadãos, defendendo valores democráticos aqui, mas apoiando seus violadores lá.
Li que, a última coisa que o Ocidente quer é rever seus laços espúrios com a Arábia Saudita, Catar , Emirados e outros países lacaios. Para a máquina de guerra norte-americana quanto mais ódio e vingança melhor, assim arrasta vários outros países para a guerra , países estes que logo-logo vão estar comprando mísseis que custam milhões de dólares a unidade.
Também li que é muito tênue a linha que separa as manifestações públicas de solidariedade do seu aproveitamento político. Assim como também é difícil, pela sensibilidade e repulsa que os temas nos provocam, analisarmos o envolvimento dos políticos nessas mesmas manifestações. Para o fazermos é essencial que nos debrucemos sobre algumas das suas atitudes no exercício das suas funções públicas que, sejamos claros, muitas vezes são o oposto daquilo que apregoam.
Mas é importante frisar: “Não somos todos Charlie” porque não se tratou de um ataque contra a “imprensa livre”. Há muito para desvendar nos próximos tempos. Estejamos atentos. Não vamos ser 'vaca de presépio' Flávio A. Portalet Jr.